Meio-dia. Doze horas. Intervalo. Hora do almoço. Hora de
parar um pouco para alguns, de andar mais depressa para outros. Hora de fazer
hora ou, simplesmente, hora de planejar as próximas horas. Espaço no tempo,
breve tempo cruzando o espaço apertado ou vazio da rotina.
O operário da obra da esquina parou para almoçar. Em que
pensa ele, enquanto saboreia honestamente o feijão e arroz de cada meio-dia? O
velho maltrapilho e sujo continua lá, à porta do mercado. Um tom suplicante de
fome e tédio ecoa em sua mão estendida. Em vão, vai tentando contar sua
história aos que esbarram nele com as mãos surdas, cheias de sacolas de compras,
e o olhar mudo de quem nem o vê.
Na próxima esquina,
uma criança dormita ao colo da artesã indígena, sentada sobre as pedras frias
da calçada. Dorme, menino, dorme. Tua mãe acordada embala sonhos desnutridos.
Talvez mãe e filho sonhem que ainda estão na mata, alimentando-se da alegria
dos frutos da terra, banhando-se nus nas águas pagãs e cristalinas dos riachos,
como faziam seus ancestrais. Mas, há tempos, alcançou-os a estupidez e a
ambição predadora do homem civilizado e transformou-lhes os sonhos tribais em
pesadelos urbanos. Em nome do progresso, caciques brancos devastaram a mata e
poluíram os rios. Covardemente arrancaram os filhos da selva do regaço generoso
da Mãe Natureza e os transplantaram ali, numa esquina qualquer do descaso. Dorme,
menino, dorme. Assim e apenas assim, ainda podes sonhar com os sonhos que te
roubaram.
Ao acaso da própria sorte, em outra esquina, está a velha
prostituta da rua central. Na hora do almoço, ela se serve, por quinze reais, a
um outro infeliz que deixou de almoçar para levá-la a um quarto fétido nos
fundos de um prédio semiabandonado. Bem perto dali, em qualquer esquina, na via
pública, à beira da estrada ou na boca dos morros, adolescentes sem
perspectivas de futuro vendem drogas ou vendem o corpo a qualquer um que possa pagá-los.
Não importa a origem do dinheiro. Pode vir de mãos calejadas, do furto
inconsequente ou do latrocínio. Pode vir das mãos lisas que ajeitam a gravata
italiana no colarinho branco, as mesmas mãos cheias de dedos que manipulam
contas de muitos dígitos em paraísos fiscais. Na banca de jornais de outra
esquina, mulheres siliconadas − quase ou totalmente nuas − estampam capas de revistas. Jornais
exibem, em páginas coloridas, manchetes de violência criminal.
Corrupção ativa e passiva, podridão moral das altas esferas ao submundo do
crime e escândalos na política nacional e internacional deixaram de causar o
espanto das manchetes, viraram rotina. Há sempre quem as leia e faça cara de
indignação. Mas, no dia seguinte, o jornal vai para o lixo ou vira papel para
embrulhar peixe na feira. Manchetes são descartáveis.
Faz tempo inventaram coisas descartáveis. A maioria nem é
biodegradável. E agora importaram o verbo
deletar. Gente também virou coisa deletável. Amigo
- a espécie rara cultivada durante anos - virou mera lista de contatos do
Orkut, Facebook, MSN e similares. Sim, muitos contatos são realmente de amigos,
familiares, companheiros de atividades culturais ou profissionais. Mas, agora, chama-se
também de amigo a qualquer nome - ilustrado por uma foto e um perfil
nem sempre verdadeiros - que qualquer um adiciona à sua lista de centenas de “amigos”
nas redes sociais. Contatos imediatos. Contatos superficiais em que amor e
amigo tornaram-se palavras vazias de sentimentos verdadeiros. Chamam também de
amor ao que pode ser apenas um relacionamento fortuito entre um homem e uma
mulher. Tudo pode começar com uma rápida investida visual num barzinho, numa
balada, na fila do restaurante ou numa sala de bate-papo virtual em pleno
meio-dia. E tudo pode acabar junto com a tarde ou noite de prazer. Sexo pelo
sexo. Momentos de prazer e nada mais. Muitos homens sempre fizeram isso. E
agora muitas mulheres também o fazem, pois está na moda ser uma mulher “bem-resolvida”.
Amor e amizade podem ser descartáveis. Viraram palavras ocas. Sensações
efêmeras. Nomes deletáveis. Simples assim.
Meio-dia. Hora do almoço. Misturando-se aos sabores que
exalam das cozinhas dos restaurantes, há um cheiro sombrio de decadência humana
rondando pelas esquinas invisíveis dos tempos, em plena luz do meio-dia. Mas
isso embrulha o estômago. Mais agradável olhar vitrines, entregar-se ao apelo
do consumo, coisificar-se. Comprar ideias e conceitos e vestir-se
inteiramente com eles, só porque estão na moda.
Meio-dia. Hora do almoço. Lá em outra esquina, o som
melancólico de uma flauta se mescla ao canto de aves que não conheço. Seriam os
pássaros da mata dos ancestrais da artesã indígena? Um casal de velhos caminha
de mãos dadas e sem pressa, admirando
uma revoada de pombos e esbarrando na multidão que não os vê. Ele a chama de
querida, e ela o trata por meu bem. Estão fora de moda. E são bem-resolvidos.
Mas isso e outros tantos outros assuntos não serão manchete no jornal de
amanhã. Possivelmente, às 11 horas e 30 minutos, Querida e Meu Bem almoçarão
tranquilos, enquanto o restaurante ainda estará quase vazio. E, logo depois,
talvez eu os reencontre, caminhando sem pressa e de mãos dadas, seguindo o som aconchegante
de uma flauta, em pleno meio-dia.
Rosa, adorei teus textos!
ResponderExcluirSei que às vezes é difícil encontrar tempo e inspiração, mas não pare de escrever por aqui.
Todas as tuas angústias com relação à coisificação, ao tempo, aos amigos... tudo isso são dúvidas que compartilho, e é tão bom saber que alguém mais pensa como você nesse mundo tão transformado...
Parabéns pelas postagens.
Prometo passar por aqui mais vezes :)
Um abraço, Cláudia.
Claúdia, amei sua visita. Obrigada por suas palavras que emanam afinidade. Traz alento saber que caminhamos pelas mesmas trilhas, percorrendo o caminho dos que se buscam além da superficialidade...
ExcluirUm grande abraço, Lechuza